Cartas de amor entre Simão e Teresa – Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco
Teresa: «Deus permita que tenhas chegado sem perigo a casa
dessa boa gente. Eu não sei o que se passa, mas há coisa misteriosa que eu não
posso adivinhar. Meu pai tem estado toda a manhã fechado com o primo, e a mim
não me deixa sair do quarto. Mandou-me tirar o tinteiro; mas eu felizmente
estava prevenida com outro. Nossa Senhora quis que a pobre viesse pedir modo de
lhe dar sinal para ela esperar esta carta. Não sei o que ela me disse. Falou-me
em criados mortos; mas eu não pude entender… Tua mana Rita está-me acenando por
trás dos vidros do teu quarto…
Disse-me agora tua mana
que os moços de meu primo tinham aparecido mortos perto da estrada. Agora já
sei tudo. Estive para lhe dizer que tu aí estás; mas não me deram tempo. Meu
pai de hora a hora dá passeios no corredor, e solta uns ais muito altos.
Ó meu querido Simão, que será feito de ti?...
Estarás tu ferido? Serei eu a causa da tua morte?»
Simão: «Diz-me o que
souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua vida. Foge desses sítios; vai para
Coimbra, e espera que o tempo melhore a nossa situação. Tem confiança nesta
desgraçada, que é digna da tua dedicação… Chega a pobre: não quero demorá-la
mais… Perguntei-lhe se se dizia de ti alguma coisa, e ela respondeu que não.
Deus o queira.»
Teresa: «Não receies
nada por mim, Simão. Todos estes trabalhos me parecem leves, se os comparo ao
que tens padecido por amor de mim. A desgraça não abala a minha firmeza, nem
deve intimidar os teus projetos. São alguns dias de tempestade, e mais nada.
Qualquer nova resolução que meu pai tome dir-te-ei logo, podendo, ou quando
puder. A falta das minhas notícias deves atribui-la sempre ao impossível.
Ama-me assim desgraçada, porque me parece que os desgraçados são os que mais
precisam de amor e de conforto. Vou ver se posso esquecer-me, dormindo. Como
isto é triste, meu querido amigo!... Adeus.»
Simão: «É necessário
arrancar-te daí – dizia a carta de Simão. – Esse convento há-de ter uma
evasiva. Procura-a, e diz-me a noite e a hora em que devo esperar-te. Se não
puderes fugir, essas portas hão-de abrir-se diante da minha cólera. Se daí te
mandarem para outro convento mais longe, avisa-me, que eu irei, sozinho ou
acompanhado, roubar-te ao caminho. É indispensável que te refaças de ânimo para
te não assustarem os arrojos da minha paixão. És minha! Não sei de que me serve
a vida, se a não sacrificar salvar-te. Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-ás
fiel na vida e na morte. Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A
submissão é uma ignomínia, quando o poder paternal é uma afronta. Escreve-me a
toda a hora que possas. Eu estou quase bom. Diz-me uma palavra, chama-me e eu
sentirei que a perda do sangue não diminui as forças do coração.»
Teresa: «Não me desampares,
Simão; não vás para Coimbra. Eu receio que meu pai me queira mudar deste
convento para outro mais rigoroso. Uma freira me disse que eu não ficava aqui;
outra positivamente me afirmou que o pai diligencia a minha ida para um
mosteiro do Porto. Sobretudo, o que me aterra, mas não me dobra, é saber eu que
o intento do pai é fazer-me professar. Por mais que imagine violências e
tiranias, nenhuma vejo capaz de me arrancar os votos. Eu não posso professar
sem ser noviça um ano, e ir a perguntas três vezes; hei-de responder sempre que
não. Se eu pudesse fugir daqui!... Ontem fui à cerca, e vi lá uma porta de
carro que dá para o caminho. Soube que algumas vezes aquela porta se abre para
entrarem carros de lenha; mas infelizmente não se torna a abrir até ao principio
do Inverno. Se não puder antes, meu Simão, fugirei nesse tempo.»
Teresa: «É impossível a
nossa correspondência. Vou ser tirada daqui para outro convento. Espera em
Coimbra notícias minhas.»
Simão: «Considero-te
perdida, Teresa. O sol de amanhã pode ser que eu não o veja. Tudo, em volta de
mim, tem uma cor de morte. Parece que o frio da minha sepultura me está
passando o sangue e os ossos.
Não posso ser o que tu
querias que eu fosse. A minha paixão não se conforma com a tua desgraça. Eras a
minha vida; tinha a certeza de que as contrariedades me não privaram de ti. Só
o receio de perder-te me mata. O que me resta do passado é a coragem de ir
buscar uma morte digna de mim e de ti. Se tens força para uma agonia lenta, eu
não posso com ela. Poderia viver com a paixão infeliz; mas este rancor sem
vingança é um inferno. Não hei-de dar barata a vida, não. Ficarás sem mim,
Teresa; mas não haverá aí um infame que te persiga depois de minha morte. Tenho
ciúmes de todas as tuas horas. Hás-de pensar com muita saudade no teu esposo do
Céu, e nunca tirarás de mim os olhos da tua alma para veres ao pé de ti o
miserável que nos matou a realidade de tantas esperanças formosas.
Tu verás esta carta
quando eu estiver num outro mundo, esperando as orações das tuas lágrimas. As
orações! Admiro-me desta faísca de fé que me alumia nas minhas trevas!... Tu
deras-me com o amor a religião, Teresa. Ainda creio; não se apaga a luz que é
tua; mas a providência divina desamparou-me.
Lembra-te de mim. Vive,
para explicares ao mundo, com a tua lealdade a uma sombra, a razão por que me
atraíste a um abismo. Escutarás com glória a voz do mundo, dizendo que eras
digna de mim. À hora em que leres esta carta…»
Teresa: «Simão, meu
esposo. Sei tudo... Está conosco a morte. Olha que te escrevo sem lágrimas. A
minha agonia começou há sete meses. Deus é bom, que me poupou ao crime. Ouvi a
notícia da tua próxima morte, e então compreendi porque estou morrendo hora a
hora. Aqui está o nosso fim, Simão!... Olha as nossas esperanças! Quando tu me
dizias os teus sonhos de felicidade, e eu te dizia os meus!... Que mal fariam a
Deus os nossos inocentes desejos?!... Porque não merecemos nós o que tanta
gente tem?... Assim acabaria tudo, Simão? Não posso crê-lo! A eternidade
apresenta-se-me tenebrosa, porque a esperança era a luz que me guiava de ti
para a fé. Mas não pode findar assim o nosso destino. Vê se podes segurar o
último fio da tua vida a uma esperança qualquer. Ver-nos-emos num outro mundo,
Simão? Terei eu merecido a Deus contemplar-te? Eu rezo, suplico, mas desfaleço
na fé quando me lembram as últimas agonias do teu martírio. As minhas são
suaves; quase que as não sinto. Não deve custar a morte a quem tiver o coração
tranqüilo. O pior é a saudade, saudade daquelas esperanças que tu achavas no
meu coração, adivinhando as tuas. Não importa, se nada há além desta vida. Ao
menos, morrer. Se tu pudesses viver agora, de que te serviria? Eu também estou
condenada, e sem remédio. Segue-me, Simão! Não tenhas saudades da vida, não
tenhas, ainda que a razão te diga que podias ser feliz, se me não tivesses
encontrado no caminho por onde te levei à morte... E que morte, meu Deus!...
Aceita-a! Não te arrependas. Se houver crime, a justiça de Deus te perdoará
pelas angústias que tens de sofrer no cárcere... e nos últimos dias, e na
presença da...»
Simão:
"Não me fujas ainda, Teresa. Já não vejo a forca, nem a morte. Meu pai
protege-me, e a salvação é possível. Prende ao coração os últimos fios da tua vida.
Prolonga a tua agonia, enquanto te eu disser que espero. Amanhã vou para as
cadeias do Porto, e hei de ali esperar a absolvição ou comutação da sentença. A
vida é tudo. Posso amar-te no degredo. Em toda a parte há céu, e flores, e
Deus. Se viveres, um dia serás livre; a pedra do sepulcro é que nunca se
levanta, Vive, Teresa, vive! Há dias, lembrava-me que as tuas lágrimas lavariam
da minha face as nódoas do sangue do enforcado. Esse pesadelo atroz passou.
Agora neste inferno respira-se; o esparto do carrasco já me não aperta em
sonhos a garganta. Já fito os olhos no céu, e reconheço a providência dos
infelizes. Ontem, vi as nossas estrelas, aquelas dos nossos segredos nas noites
da ausência. Volvi à vida, e tenho o coração cheio de esperanças. Não morras,
filha da minha alma!»
Simão: «O pão do
trabalho de cada dia e o teu seio para repousar uma hora a face, pura de
manchas: não pedi mais ao céu. Achei-me homem aos dezesseis anos. Vi a virtude
à luz do teu amor. Cuidei que era santa a paixão que. absorvia todas as outras,
ou as depurava com o seu fogo sagrado. Nunca os meus pensamentos foram
denegridos por um desejo que eu não possa confessar alto diante de todo o
mundo. Diz tu, Teresa, se os meus lábios profanaram a pureza de teus ouvidos.
Pergunta a Deus quando quis eu fazer do meu amor o teu opróbrio. Nunca, Teresa!
Nunca, 6 mundo que me condenas! Se teu pai quisesse que eu me arrastasse a seus
pés para te merecer, beijar-lhos-ia. Se tu me mandasses morrer para te não
privar de ser feliz com outro homem, morreria, Teresa! Mas tu eras sozinha e
infeliz, e eu cuidei que o teu algoz não devia sobreviver-te. Eis-me aqui
homicida, e sem remorsos. A insânia do crime aturde a consciência; não a minha,
que se não temia das escadas da forca, nos dias em que o meu despertar era
sempre o estrebuxamento da sufocação. Eu esperava a cada hora o chamamento para
o oratório, e dizia comigo: falarei a Jesus Cristo. Sem pavor, premeditava nas
setenta horas dessa agonia moral, e antevia consolações que o crime não ousa
esperar sem injúria da justiça de Deus. Mas chorava por ti, Teresa! O travor do
meu cálix tinha sobre a amargura as mil amarguras das tuas lágrimas. Gemias aos
meus ouvidos, mártir! Ver-me-ias sacudindo nas convulsões da morte, em teus
delírios. A mesma morte tem horror da suprema desgraça. Tarde morrerias, A
minha imagem, em vez de te acenar com a palma de martírios, te seria um
fantasma levando das tábuas dum cadafalso. Que morte a tua, ó minha santa
amiga!»
Teresa: «Dez anos! -
dizia-lhe a enclausurada de Monchique. Em dez anos terá morrido meu pai e eu
serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe, se não tiveres cumprido a
sentença. Se vais ao degredo, para sempre te perdi, Simão, porque morrerás, ou
não acharás memória de mim, quando voltares».
Simão: «Não esperes
nada, mártir. A luta com a desgraça é inútil, e eu não posso já lutar. Foi um
atroz engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo, Caminhemos ao
encontro da morte... Há um segredo que só no sepulcro se sabe. Ver-nos-emos? Vou.
Abomino a pátria, abomino a minha família; todo este solo está aos meus olhos
coberto de forcas, e quantos homens falam a minha língua, creio que os ouço
vociferar as imprecações do carrasco. Em Portugal, nem a liberdade com a
opulência; nem já agora a realização das esperanças que me dava o teu amor,
Teresa! Esquece-te de mim, e adormece no seio do nada. Eu quero morrer, mas não
aqui. Apague-se a luz dos meus olhos; mas a luz do céu, quero-a! Quero ver o
céu no meu último olhar! Não me peças que aceite dez anos de prisão. Tu não
sabes o que é a liberdade cativa dez anos! Não compreendes a tortura dos meus
vinte meses. A voz única que tenho ouvido é a da mulher piedosa que me esmola o
pão de cada dia, e a do aguazil que veio dar-me a sarcástica boa-nova de uma
graça real, que me comuta o morrer instantâneo da forca pelas agonias de dez
anos de cárcere.
Salva-te, se podes,
Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande desgraçado. Se teu pai te chama, vai.
Se tem de renascer para ti uma aurora de paz, vive para a felicidade desse dia.
E, se não, morre, Teresa, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó
as fibras laceradas pela dor, é o esquecimento que salva das injúrias a memória
dos padecentes". As palavras únicas de Teresa, em resposta àquela carta,
significativa da turbação do infeliz, foram estas: "Morrerei, Simão,
morrerei. Perdoa tu ao meu destino... Perdi-te... Bem sabes que sorte eu queria
dar-te... e morro, porque não posso, nem poderei jamais resgatar-te. Se podes,
viva; não te peço que morras, Simão; quero que vivas para me chorares.
Consolar-te-á o meu espírito... Estou tranqüila. Vejo a aurora da paz... Adeus,
até ao céu, Simão».
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